6 de maio de 2013

“Quando fiz onze anos parti o mealheiro e fui ver as putas.”


A fenda do mealheiro, um porquinho em porcelana envernizada, cor de vomitado, permitia introduzir moedas mas não as deixava sair. O meu pai escolhera esse mealheiro de sentido único por ele corresponder à sua concepção da vida: o dinheiro foi feito para ser guardado e não para ser gasto.
(De “O Sr. Ibrahim e as Flores do Corão” | Texto francês | Em cena pelo Teatro Meridional)

Foi com este parágrafo que começou. Pela voz e interpretação de Miguel Seabra, e ao som da música de Rui Rebelo, o texto de Eric-Emmanuel Schmitt leva-nos reflectir sobre a importância dos valores e a relativização da nossa vida. Um miúdo foi abandonado pela mãe quando nasceu. O pai deixou-o anos mais tarde, e suicidou-se. O miúdo sentia-se culpado e não conseguia entender porque não era constituído de matéria passível de ser amada. Faz uma viagem pela pré-adolescência, pede para ser adoptado pelo Sr. Ibrahim da mercearia -- que não era, afinal, Árabe, mas Muçulmano -- e parte em descoberta da tolerância e da amizade, numa viagem entre a Europa do sul e o médio oriente. Moma, nome menos despretensioso que Moisés, o de baptismo, termina autodenominando-se Mohamed, dono de um espaço comercial contíguo na Rua Bleu, que afinal não é realmente azul. Porque nem sempre as coisas são o que parecem.

Pessoalmente gostei muito desta peça, à qual fui assistir ontem. Podia ter sido perfeita, se tivessem roubado 20min ao texto, pois é difícil ouvir uma narrativa de quase 2h. À parte disso, a história é densa, é sincera, é simples, é bonita, e a interpretação convincente. À medida que Miguel Seabra vai debitando o texto, Rui Rebelo vai acompanhando o ritmo com a sua guitarra, depois o piano, e por fim a flauta. O compasso musical ajuda à emotividade.

E porque aqui não se evitam temas, queria dar uma nota: inicialmente não compreendemos quaisquer limitações ao actor, mas a determinada altura é perceptível a paralisia do braço direito, o coxear da perna direita, e uma gaguez ténue, quase subtil. Vim a saber que ele foi surpreendido por um AVC há mais de 10 anos, mas que nunca se deixou vencer pelo incidente, levando a paixão do teatro em frente. Merecedor de ovação em pé, de facto.



I didn’t translate this post because it has to do with a cultural and entertainment programme in Portugal. Please come back here some other time. Thank you. .¸¸.*

14 comentários:

  1. Parece muito interessante. E nem só peças de teatro nos fazem relativizar as nossas vidas; conheço pessoas cujas histórias ultrapassam qualquer tipo de ficção...
    Realmente o abandono de uma criança , pela mãe, e o suicídio de um pai fragilizam uma criança de forma inimaginável. Resta saber se o sr. Ibrahim conseguiu remediar as coisas...
    Parabéns ao actor por não desistir, apesar do AVC. Até acho que vi uma reportagem na tv há muito tempo com esse actor... mas não tenho a certeza se era o mesmo...

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    1. É provável que seja, Laura. Ele já fez TV, é mais ou menos conhecido. O Sr. Ibrahim deu-lhe a religião e a mercearia, que foram as bases para a nova identidade de Moma. Se tiveres oportunidade, vê a peça. É fácil de entender, e muito ternurenta. Também tem alguma graça, mas não forçada.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Esteve em cena cá no burgo, ITK. E realmente não é para todos: o meu marido até cochilou durante... :-)

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  3. Pareceu-me bem interessante ;)

    Beijocas

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  4. Ui, isso deve ser um espectáculo. Arrojado.

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    1. Sim, arrojado é um bom adjectivo. Aborda algumas questões duras de modo fácil, despretensioso. :-)

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  5. É este: http://sailingpepa.blogspot.pt/


    :)

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  6. O meu querido Miguel Seabra, que tive o prazer de conhecer na minha outra vida! [entretanto seguimos caminhos diferentes, mas sempre que o revejo é um prazer!]

    O Miguel Seabra faz um excelente trabalho, e tem sido um grande responsável pelo teatro português além-fronteiras.

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    1. O rosto dizia-me alguma coisa, mas o nome não soava. Depois li algumas coisas sobre ele e percebi que ele estava por trás de uma série de projectos a que já assisti. Saber que ele não desistiu depois de... faz-me admirá-lo e ficar atenta às suas pegadas. Que outra vida foi a tua, Gata? Quantas gastaste até já? :-P

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