Talvez por melhor me identificar com filosofias orientais e ser altamente anticientífica, o lado de apego ao oculto, à astrologia e até à numerologia não me fascina. Talvez por isso eu, R. del Piño, fã confessa da literatura pessoana, sempre pus na borda do prato tudo o que a estas ciências dizia respeito aquando da leitura de livros, poemas e ensaios do grande mestre das palavras. (Regurgita de êxtase, Happy Woman: se Pessoa fosse vivo, ganhavas um esfusiante leitor.)
Por isso, apontar a tão ansiada visita à última morada em vida do meu autor / poeta favorito, aquando da exposição temática sob o heterónimo de Raphael Baldaya, o sábio astrólogo, foi -- só por si -- um golpe de azar. Porém, independentemente da decoração temática não estar ao meu gosto, esperava ver um espaço muito mais dinâmico, completo, com várias facetas, muita pessoalidade, muita personalidade, muitos personagens… enfim, algo a fazer jus à diversidade e à multiplicidade de Fernando Pessoa.
Ao invés disso encontrei um espaço empobrecido, de paredes claras preenchidas com lettrings da mesma ode de Ricardo Reis («Se a ciência é vida, sábio é só o néscio. / Quão pouca diferença a mente interna / Do homem da dos brutos! Sus! Deixai / Brincar os moribundos!»), como se o poeta com um dos mais vastos espólios reconhecidos, fosse apenas uns simples versos.
Gostava de ter visto algo a fazer jus à sua pluralidade.
Gostava que houvesse uma reminiscência ao mais íntimo de Álvaro de Campos («Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada») ou de Ricardo Reis («Para ser grande, sê inteiro»), versos que tão bem ilustram um dos principais desassossegos em vida do autor do “Livro do Desassossego”.
É um facto que Pessoa era despegado dos objectos do quotidiano, mas havia de ter reunido qualquer coisa mais para além dos óculos (serão originais?), do bloquinho de bolso, da cigarreira, do livro de orações e da boquilha. Uma outra estante preenchida com objectos de barbearia, gentilmente doados pelo filho do barbeiro pessoal de Pessoa, é para inglês ver: em primeiro lugar, porque são apenas objectos que em nada nos contam da pessoa de Pessoa, de quem queremos saber mais; em segundo lugar, porque são objectos genéricos, que muito provavelmente nem sequer foram utilizados pela pessoa de Pessoa.
O quarto… que dizer? Como a casa estava sob a heteronímia de Baldaya, estava decorado de panos negros, com a calendarização astrológica de cada signo, e uma colcha medonha, cheia de sóis e luas, daqueles que reflectem no tecto (blarghhh!). Demasiado esotérico e sombrio para o meu gosto. Nenhum génio merecia que o recordassem desta maneira.
Mas calhou que esse génio nasceu num país que aprecia muito pouco a literatura. Calhou que o génio viajou por outros continentes, assentou arraiais noutros meios, mas decidiu exibir com orgulho a sua pátria na sua identificação, e veio terminar os seus dias neste país. Calhou ter deixado aqui a sua última morada. E o nosso Estado, esse portento da idiotice e da ignobilidade, que é o detentor real da Casa Fernando Pessoa, vai continuar a preferir subsidiar os rendimentos mínimos, a espalhafatosa Vasconcelos ou as touradas (este sim, o verdadeiro espectáculo reflector da cultura portuguesa -- porque na sua maioria alimenta néscios, aparvalhados, brutos e idiotas).
Como ele próprio dizia, “a minha pátria é a minha língua”. Subscrevo. Porque a minha pátria não pode ser a que maltrata o maior mago das palavras que alguma vez conheci.
Porta da casa House's door |
Maybe because I identify myself more with Eastern philosophies and I’m highly unscientific, clinging to the side of the occult, astrology and numerology doesn’t fascinate me at all. Maybe that's why I, R. del Piño, confessed fan of Pessoa, always left aside everything in his literature related to these sciences, when reading the books, poems and essays of the great master of words. (You may regurgitate of ecstasy, Happy Woman: if Pessoa was alive, you’d have one more bubbly reader.)
So, scheduling the expected visit to the last address of my favourite author / poet to when his house was under the thematic exhibition of the heteronym Raphael Baldaya the wise astrologer, was -- in itself -- a stroke of bad luck. However, regardless the themed decor not fit to my taste, I expected to see something much more dynamic, complete, with multiple facets, much personality, a lot of character, many characters ... well, something to do justice to the diversity and multiplicity of Fernando Pessoa.
Instead, I found a dwindling space, with bright walls filled with the same ode of Ricardo Reis in different lettrings, as if the poet with one of the largest recognized literary estates, was just a few simple lines.
I would love to have seen something to live up to his plurality. I wish there was a throwback to the most intimate of Álvaro de Campos and Ricardo Reis, verses that so well illustrate one of the major anxieties of the author of the "Livro do Desassossego" during his life.
It is a fact that Pessoa was peeled from everyday objects, but there should have been gathered anything more beyond the glasses (are they original?), the pad pocket, the cigarette, the prayer book and the mouthpiece. Another bookcase filled with barbershop objects, kindly donated by the son of Pessoa’s barber, is show-off: first, because they are just objects that tell us nothing about someone; second, because they are generic objects, they probably weren’t even used by Pessoa.
The room… what to say? As the house was under the heteronym of Baldaya, it was decorated with black clothes, with the astrological calendar of every zodiac sign, and a hideous quilt, filled with suns and moons, those that reflect on the ceiling (blarghhh!). It was too esoteric and dark for my taste. No genius deserves to be remembered this way.
But it happened that this genius was born in a country that doesn’t enjoy literature. It happened that the genius travelled overseas, sat camp in other places, but decided to proudly display his homeland in his identification, and came to finish his days in this country. And our government, this portent of idiocy and ignobleness, which is the real owner of Casa Fernando Pessoa, will continue to subsidize the minimal incomes, the tawdry Vasconcelos or bullfighting (and this is the real reflector show of the Portuguese culture -- because it feeds mostly bamboozles, foolish, gross and stupid).
As he used to say, "my homeland is my language". I agree. Because it cannot be the one that mistreats the greatest magician of words I've ever met.
Há uns tempos vi uma espécie de reportagem sobre a casa dele e também a achei meia pobrezinha... mas pobrezinha de conteúdo.
ResponderEliminarCuriosamente no ano passado, por esta mesma altura, a Gulbenkian exibia uma exposição fenomenal e muito completa. Gostava de saber onde para todo aquele material. Podiam tê-lo levado para a casa, pah!
EliminarA esse descaso não serão alheios os problemas com a administração daquilo, presumo. Ou então é puro desleixo, enfim. Percebo a tua frustração, uma pessoa vai animada e depois...Até caíste e tudo, grande prémio de consolação :P (´tou a brincar, espero que estejas melhor)
ResponderEliminarO quê, não gostas da juanita?? oh, sacrilégio :D
Por acaso não estava nos nossos planos visitar a casa desta vez, mas como estava mau tempo pelo Estoril, fizemos mais programas em Lisboa. Mas para teres noção, o J. ia preparado para eu lá passar 5h, e eu estive cerca de meia-hora. :-(
EliminarFiquei triste com a tua descrição.
ResponderEliminarSendo eu Lisboeta, planeio visitar os nossos refúgios culturais, vezes sem fim... E, como Lisboeta, acabo por nunca concretizar tal intenção. Este espaço está (va), precisamente, no início do meu roteiro...
Mas não deixes de ir, Raquel. Eles vão tendo exposições itinerantes, e pode ser que a casa esteja mais completa quando a visitares.
EliminarDe facto tenho que concordar contigo. Contudo, sou uma fã! ;)
ResponderEliminarJá foste lá, presumo.
EliminarGrande post! Também nunca lá fui, mas realmente com tantos que têm estado à frente daquilo ...até não fiquei muito admirada. Ao menos que enchessem as paredes com "Chuva Oblíqua" e a "Tabacaria"...:-) Enfim, este país já nos desilude em tanta coisa...
ResponderEliminarParece estar instituído que a cultura não serve para nada...parece que é sempre o parente pobre , a não ser é claro para certos artistas de "regime".
Que bom que encontro alguém que se recorda do Chuva Oblíqua, one of my favourites. :-)
EliminarHá muitos anos que não vou à Casa Fernando Pessoa (e a última vez que fui, foi para um evento que nada tinha que ver com o Fernando Pessoa).
ResponderEliminarMas, pela tua descrição, resta-me dizer que espera mais da Inês Pedrosa, a actual directora do espaço.
No entanto, e pelo lado positivo, recordo um espectáculo (nos idos anos 90 do século 20) no Teatro Nacional Dona Maria II chamado "Fausto Fernando Fragmentos", com encenação do Ricardo Pais, e interpretação - entre outros - de João Grosso e José Neves.
Viste? Estamos no século XXI e estás a recordar-te de uma boa homenagem que lhe fizeram no século XX. Mau, não? É incrível como há pessoas que dão a volta ao mundo para irem beijar o túmulo de Oscar Wilde no cemitério Père Lachaise; e nós temos na nossa literatura alguém muito mais plural, muito mais completo, e lembra-mo-lo assim.
EliminarQue desilusão, eu que adoro Pessoa.
ResponderEliminarContinua a ser o maior gigante das palavras, mas não lhe estamos a fazer jus.
EliminarNunca conheci a casa de Fernando Pessoa, mas também nunca fui grande fã, prefiro Saramago por exemplo :D
ResponderEliminarSão ambos bons, cada um à sua maneira.
EliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarApesar de concordar com a pobreza (não em termos monetários, mas de concepção), pelo menos há espaço e condições para um dia se tornar um espaço "comme il faut".
ResponderEliminarA casa F.P. tem vinte e tal anos, e lembro-me que fui lá semanas ou meses após a sua inauguração (andava para aí no 8.º ano ou 9.º ano) numa visita organizada pela escola. Na altura quando lá vi um homem sentado numa secretária assustei-me imenso porque era precisamente o F.P. que lá estava, na posição de quem estava a escrever. Não sei se o dito "boneco" era de cera ou de cartolina, mas quando abriram a porta acredita que muita gente se assustou -afinal, a maioria de nós, naquelas idades não sabia sequer quem era o tal F.P. Eu por exemplo, confundia o Fernando Pessoa com o Fernando Pessa-. Houve quem acreditasse nos segundos seguintes que o homem estava mesmo ali e pediu até para que se fizesse pouco barulho. Nunca mais me esqueço dese episódio.
PS. Para mim o homem estava mesmo lá. Eu vio-o.
Sim, lá espaço tem. Se não fosse tão grande fisicamente, talvez a pobreza de conteúdo não fosse tão óbvia, sei lá?
EliminarOoooh! Agora perdi a vontade de ir lá!
ResponderEliminarNão percas, Cat. Porque se me desiludi, não signifique que não volte. É como comer qualquer coisa: nem sempre está bem cozinhado, mas não quer dizer que não volte a experimentar o prato. ;-)
EliminarNunca lá fui, mas agora não tenho a mínima curiosidade. Adoro Pessoa e, tal como tu, iria ficar desiludida.
ResponderEliminarTal como disse em cima, não te deixes levar só por esta opinião. Noutras alturas, com outras exposições, poderá valer mais a pena. O génio merece uma visita. :-)
EliminarNunca visitei mas parece que não vale a pena então... Quem sabe um dia passe por lá mesmo assim! Em Portugal não se dá valor às melhores coisas que por cá existem :\
ResponderEliminarPassa, passa, mesmo assim. :-) Não escrevi isto para desmobilizar futuros visitantes.
EliminarEu identifico-me com algumas coisas de fernando pessoa, mas não conheço a sua casa.
ResponderEliminarMas sinceramente, penso que as casas-museu não mostram na realidade aquilo que eles viveram , mas sim em algumas situações o que querem que nós conhecamos.
Beijinhos
Então ali devem querer que conheçamos mt pouquinho. :-((
EliminarJá visitei a casa de Fernando Pessoa há tanto, mas tanto tempo que julgo que muito haverá de estar diferente. Não ia com expectativas; contentei-me com pouco. Recordo-me de umas estatuetas em papel prensado que acabei por não comprar e que me arrependi! É o meu poeta preferido, aliás, todos eles na sua verdadeira desfragmentação do "eu".
ResponderEliminarbeijocas,
Sapatinho
http://modanosapatinho.blogspot.pt/
Desta vez, nem em termos de recuerdos, aquilo valeu a pena. E eu ia disposta a abrir os cordões à bolsa. :-)
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