26 de fevereiro de 2013

Podia acontecer-te: uma história sem parágrafos | It could happen to you: a story in one piece

Apaixonou-se às primeiras teclas. Ela era exactamente assim, de coração fácil. Sorvia cada palavra dele em busca de um sinal, e oferecia-se em respostas sedutoras. Durante meses alimentaram uma fantasia que podia estar na base de uma qualquer comédia romântica de Domingo à tarde. Um dia ele enviou-lhe uma fotografia sua: era feio. Feio como aqueles homens feios por quem passamos na rua e ficam guardados no nosso pensamento de tão desengraçados que são. Ela estava tão ébria de paixão que o viu bonito. Devolveu-lhe o gesto oferecendo-lhe aquela fotografia onde ela se julgava mais gira, mais atraente. Quando a viu ele ficou sem fôlego e exclamou: «é linda»! Já não podiam esperar mais; tinham de encontrar-se. Apanharam um comboio na mesma linha, mas em direcções diferentes: ele desceu do norte, ela subiu do sul. Decidiram encontrar-se num ponto intermédio e logo ao primeiro abraço envolveram-se num beijo que guardava desejos alimentados e recalcados. Já não tinham mais palavras a dizer; tinham sido ditas durante os meses de corte. Acorreram a um quarto alugado e já só adormeceram quando começavam a ouvir-se na rua os barulhos daqueles que acordam cedo para servir os demais: o padeiro, o ardina, o motorista de autocarro, os cantoneiros da câmara. Olharam-se assim, de cabelos revoltos e olhos remelados, sob a cruel e crua cor matinal. Continuaram sem trocar uma palavra. Vestiram-se emudecidos, e fizeram o check-out. Apanharam ambos um comboio em linhas inversas, ali por volta do meio-dia. Voltaram às suas vidas e nunca mais tornaram a visitar o blog um do outro.


She fell in love at the first keys. She was exactly like this, with an easy heart. She would sip every little word of his looking for a sign, and would offer herself in seductive answers. During months they fuelled a fantasy that could be the basis of some romantic comedy of a Sunday afternoon. One day he sent her his photograph: he was ugly. Ugly like those ugly men with whom we cross, and get stuck on our minds because of their ungracefulness. She was so drunk with passion that she saw him handsome. She returned the gesture giving him that photo where she judged herself pretty, more attractive. When he saw her he stood with no breath and shouted: «she’s beautiful»! They couldn’t wait any longer; they had to meet each other. They caught up a train on the same line, but in different directions: he went down from north; she went up from the south. They decided to meet in a midpoint and by the first cuddle they engaged in a kiss that kept nourished and repressed desires. They had no more words to say to each other; they had all been spoken during the months of courting. They rushed to a rented room and could only fall asleep when the noises of the ones who rise early to serve the others started being heard: the baker, the newspaper vendor, the bus driver, the city hall roadmender. They looked at each other like this, with wild hair and dirty eyes, under the cruel and raw morning colour. They went on without exchanging a word. They dressed up muted, and checked-out the hotel. They both caught up a train in backward lines around noon. They went back to their own lives and never visited each others blog anymore.

18 comentários:

  1. R: nem microondas nem gato :) não tenho nenhum!

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  2. Faz-me lembrar os episódios que acabei de ver do Catfish, o novo programa da MTV sobre malta que se apaixona online sem nunca se ver.

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    1. Acontece a muito boa gente. Às vezes dá resultado, outras vezes nem tanto.

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  3. Uma estória rápida, à semelhança da rapidez que a internet trouxe ao universo dos relacionamentos.
    Gostei muito! :)

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  4. Também estou com a Ana. Só não diria que a estória, ou hitória, foi assim tão rápida uma vez que ainda se falaram durante meses :)
    A internet tem este poder de aproximação, usa a nossa imaginação para criarmos a situação perfeita com alguém. Mesmo que seja efémero.
    Gostei muito.

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    1. Tocaste no ponto fulcral, Diogo. É a fantasia de uma história perfeita, sem que nos apercebamos que a mesma é puramente fruto de imaginação. Apesar de tudo, sou fã da dita aproximação de que falas. Aqui só nos ligamos às pessoas que mais nos interessam, ou com que mais nos identificamos. Aqui ainda temos o tal livre-arbítrio. ;-)

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    2. R de Raquel Rute Rita... O livre arbítrio não existe :D e esta dava pano para mangas.
      E sim, dentro do alcance de um livre arbítrio aqui é onde ele mora. Parece-me bem. Divertido :)

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    3. Ou R. de Rafaela, Renata, Rosa, Rosário, Ricardina, Romana, Raimunda, Rebeca, Regina... ;-)
      Ainda vamos escrever uma história a duas mãos sobre livre-arbítrio. Isso é que era o supra-sumo da personificação.

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    4. O livre-arbítrio tem muiyo que se lhe diga.
      Pergunta para queijo. Acreditas ou achas que tal não existe?

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    5. Estou certa de que tal não existe. Se existisse, andávamos menos stressados, e sempre menos preocupados com os convencionalismos sociais. Se calhar o problema é nosso, porque não recusamos o rumo da maioria. Se calhar felizes são os tolos, pois vivem de acordo com as suas convicções... sejam elas quais forem.

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    6. Também não acredito que exista vontade próprio, existe sempre um rol de influências que nos empurram para determinado comportamento.
      Estamos os dois de acordo já não há mais nada a acrescentar, ou há?
      Engraçado é quando discordamos.

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    7. Queres andar à batatada, Diogo? ;-)

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    8. :D vamos a isso.
      Mas tens de concordar que o foco da discussão destes assuntos está sempre na defesa das opiniões e de uma conquista, que o outro se renda.

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  5. E durou para sempre, até ao momento em que partiram. Gostei disto.

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    1. Já dizia o poeta: não interessa quanto tempo dura, mas sim a intensidade com que acontece.

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