20 de fevereiro de 2013

Sem raia, nem realidade | Without boundaries, nor reality

São exactamente 20h. Em menos de cinco minutos vou ouvir uma porta bater. Será ela a entrar em casa. É-me fácil traçar o seu percurso no apartamento estando apenas atenta ao som dos seus passos. São as indiscrições das construções modernas.

Dirigir-se-á primeiro ao quarto, onde despirá o papel de profissional de sucesso, passará em seguida pelo quarto-de-banho, onde se refrescará das vicissitudes da sua vida diária, em muito pouco tempo chegará à cozinha para preparar o repasto. Terá tempo ainda de se deter por dois minutos, não mais que isso, na selecção da voz que a irá namorar durante o serão.

Criteriosa na sua escolha, estará longe de sequer imaginar que haverá alguém expectante debaixo do seu chão, alguém que ansiará adivinhar a harmonia. Tomara que se envolva e me deixe envolver na densidade de Jeff Buckley ou na feminilidade de Kate Walsh. Nessa altura suspirarei na evidência de que nada a fará erguer a voz. Porque ele está quase a chegar...

Por entre os acordes da melodia reconhecerei ainda o som da água que se escorrerá por entre as fendas do lava-loiça, e rogarei para que ele se atrase num semáforo indolente. Ela concentrar-se-á no preparo de uma daquelas iguarias que todos os habitantes do prédio conhecem de cheiro.

Devota e confiante, todos os dias ela regista os seus costumes em prol daquilo que os uniu. Talvez ainda o ame. Talvez esteja apenas confusa na ambiguidade e obscuridade de sentido com que se embrulha o amor. Talvez até já se tenha esvaído da sua lembrança o que a levou a dizer-lhe um dia “até que a morte nos separe”. Mas ela cumpre um outro papel na perfeição, mesmo quando despe a cor que a nomeia executiva: é companheira exímia em contrato sem termo.

Ainda antes das 21h hei-de ouvir o som agudo e assertivo dos seus pneus a travar no asfalto. A porta do carro será batida em acutilância, e os sapatos negros sempre bem lustrados pelas cuidadosas mãos femininas apressar-se-ão pelos degraus curtos. A mesma porta que assistiu serena à entrada dela, será agora inóspita na sua recepção. Nem as formas inanimadas são indiferentes àquela presença. Um brado encontrará eco naquelas paredes que se adivinham lívidas, e a súplica definirá todos os significados e significantes daqueles dois estranhos, que outrora foram plural majestático.




Espectadora assídua de uma ruptura inevitável, esquadrinho a real autoridade:

valerá a pena cansar-se corpo e coração no respeito a um papel notariado, ou será o manifesto “para a vida” uma mediática expressão a uma só voz?



It’s 8 o’clock on the dot. In less than 5 minutes I’ll listen to the door slamming. It will be her arriving home. It’s easy for me to trace her route on the flat just by paying attention to the sound of her footsteps. These are the indiscretions of modern buildings.

She will head first to the bedroom, where she will undress the role of a successful professional; then she will pass by the bathroom, where she will wash way the vicissitudes of daily life; in a while she will arrive in the kitchen to prepare the meal. She will still have time to stop for two minutes, no more than that, to select the voice that will date her during the evening.

Wise in her choice, she’s far away from imagining that there’s someone expectant downstairs, someone who longs for guessing the melody. If only she wrapped up herself -- and let me do it too -- in the density of Jeff Buckley or in the femininity of Kate Walsh. By then I’ll sigh in the evidence that nothing will be able to make herself raise her voice. Because he’s arriving soon...

Between the chords of the melody I’ll recognize the sound of the water draining through the sink, and I’ll pray for him to delay himself in a slack traffic light. She will focus on preparing one of those treats that everyone in the building knows by smell.

Devoted and confident, everyday she registers the usual, in profit of what had joined them. Maybe she still loves him. Maybe she’s still confused by the haziness and gloom with what one wraps up love. Maybe what one day led her to tell “until death do us part” had already dissipated from her memory. But even when she undresses the colour that names her an executive, she carries out another role in perfection: she’s a superb companion in a permanent contract.

I’ll listen to the sharp and assertive sound of the tires of his car braking on the asphalt even before 9 o’clock. The car door will be beaten with acuteness, and the always well polished shoes will rush upstairs. The same door that saw her entrance with serenity will now be inhospitable in his reception. Even the inanimate forms aren’t indifferent to his presence. A cry will echo between those walls, and the plea will define all the meanings and the signifiers of those two strangers, who were once a majestic plural.





Assiduous bystander of an inevitable break up, I scrutinize the real authority:

Is it worth getting both body and heart tired just for the respect to a notary paper, or is the manifesto “until death” a famous one voice expression?

14 comentários:

  1. Às vezes será o peso do "papel notariado" e das convenções sociais, outras o peso do hábito ou do medo de ficar sozinha/o, de recomeçar. E assim se desperdiça o bem mais maravilhoso que temos: a vida.
    Bonito texto o teu! Obrigada*

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    1. Na verdade acredito que sejam os dois em concomitância: medo do que a sociedade pensa + medo da solidão. Obrigada pelo elogio, Ana ✈.

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  2. Realmente o casamento, como contrato, ganhou outro peso, umas vezes mais leve, para aqueles que cá estão para saborear, como é o caso dos epicuristas, ou mais pesado para os que, num esforço cultural e de pura política social, carregam-no às costas sem darem conta, ou não, que tudo poderia ser diferente.
    Não vamos ser tão negativos e acrescentar os que são muito felizes com a sua cara-metade, sem esforço sem contrapartidas sem egoísmo.

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    1. Oh Diogo, isso que descreves no último parágrafo existe? Pensei que, tal como os dinossauros, fosse espécie extinta. ;-)

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    2. Ainda estou à espera de um primeiro testemunho.
      Que os nossos respectivos não leiam esta parte :D
      Já respondi aos teus comentários, tardiamente. Da próxima prometo ser mais célere.

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    3. Ainda agora estou a começar, Diogo. Existirá tempo e oportunidade para a primeira pessoa do singular. Mas é preciso ter cuidado, porque um blog é um diário de páginas abertas. ;-)

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  3. Ora bem. É preciso ter cuidado com as ondas de choque.
    Se na oralidade é difícil, na escrita arrisco um impossível no que diz respeito à transmissão da informação sem mal entendidos.
    Gostaria de ter um heterónimo blogger onde poderia expressar os pensamentos e idéias mais absurdas, ou não, que nos passam pela cabeça. Acho que acontece a todos.
    Já experimentaste quantificar quantas coisas fazes com e sem vontade? Inclui até as pessoas que tens de cumprimentar e não te apetece nada. É uma prova em como não há livre arbitrio.

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    1. Nunca experimentei quantificar, pois corro sérios riscos de depressão. Começou no ventre da minha mãe, porque durante 42 semanas (eu fui uma resistente à saída) só comia o que ela me dava para comer. Até à maioridade obedeci aos cânones preconizados pelos meus pais. Na faculdade tive de fazer o que os professores me mandaram. No mercado de trabalho sou máquina reprodutora de serviço, e a minha opinião quase não é tida ou achada. Depois levanto-me todos os dias em horário quase pornográfico (6h30), quando a minha vontade é ficar na cama mais algum tempo. Tenho de conduzir por estradas que são um Deus-me-livre, mas sem alternativa. Venho trabalhar para uma localidade de que tenho pavor. Mais do que cumprimentar, tenho de apertar a mão a pessoas sem hábitos de higiene, das quais fugiria se pudesse. Ainda por cima tenho de o fazer a sorrir. Tenho de aturar as suas paranóias, mas o pior de tudo é que numa maioria são incultos, ignorantes, até. Por mim rodeava-me apenas de pessoas capazes de me dar algum acrescento. Queres mais? Por ora não posso, pois vou ali atirar-me de uma ponte. :-P

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  4. Eh pah! Até me estou a sentir mal por te fazer lembrar e escrever todas essas coisas.
    O dia também tem coisas boas certamente. Alguém interessante aparece, o almoço é bom, um colega divertido, um telefonema do marido ou de uma amiga, chegar a casa para junto dos teus... Queres continuar?

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    1. Cantar (e dançar) no carro enquanto conduzo para o trabalho ao som da música da semana, aproveitar a minha hora de almoço para curtir o silêncio e a solidão, e de vez em quando ter tempo para um ou outro episódio das minhas séries de eleição, chegar a casa e ter os meus cães a saltar de alegria por me verem, e mais recentemente, redescobrir os prazeres da blogosfera. ;-)

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  5. gostei muito deste texto - escreves bem!

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